Propomos-te a leitura de um texto que fala dos problemas de autoestima que muitos adolescentes sentem no seu dia a dia na escola. Fala também de amizade e solidariedade.
O importante não é o que os olhos veem mas o que o coração sente.
"Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível para os olhos."
O Principezinho
A CAIXINHA DE MÚSICA
Catarina não
gostava da cara que tinha. Achava-se feia, com o seu nariz arrebitado, a boca grande e
os olhos muito pequeninos. Na escola, as
crianças não queriam brincar com ela. Preferiam outras companhias. Corriam pelo
pátio, muito alegres, fazendo jogos em que Catarina nunca conseguia entrar. Quando a
campainha tocava, no fim das aulas, pegava na pasta de cabedal castanho,
punha-a às costas e ia sem pressa para casa, colada às paredes, com medo das sombras,
dos gracejos dos rapazes mais crescidos. Com medo de tudo que pudesse tornar
ainda mais triste a sua vida.
«Tens mesmo
cara de bolacha.» - dissera-lhe, dias antes, uma rapariga da sua turma.
Ficou muito
magoada com aquelas palavras que lhe acertaram em cheio, como uma pedrada, em
pleno coração.
E lá andava ela
com os seus olhos pequeninos e tristes, com os pés para o lado, a ver se
descobria alguém que conseguisse gostar dela, nem que fosse só um bocadinho.
No caminho para
casa encontrava todos os dias o homem do realejo. Era muito velho
e estava sempre a sorrir. Trazia, poisado no ombro, um grande papagaio de
muitas cores que passava o tempo todo a dormitar. Quase ninguém
reparava no velho que tocava cantigas muito antigas, à esquina de duas ruas sem
sol. Era um homem solitário.
Quando fez
anos, Catarina levou-lhe uma fatia de bolo de aniversário, com cerejas cristalizadas e
algumas velas em cima. O velho ficou muito comovido, guardou o bolo dentro de um
saco branco e foi-se embora, para ela não ver a sua cara enrugada cheia de lágrimas.
Um dia, quando
saiu da escola, foi procurar o seu amigo. Deixou que ele lhe agarrasse na
mão e ouviu-o dizer numa voz muito sumida: «Vim hoje aqui
com muito sacrifício só para te dizer adeus. Vou partir para muito longe, mas
gostava de te deixar uma recordação minha». Meteu a mão no bolso do sobretudo e
tirou uma pequena caixa de música. «Esta caixinha
é muito, muito velha. Nem se sabe ao certo a sua idade. Sempre que a abrires e
tiveres um desejo ele há de realizar-se imediatamente».
Catarina ficou
muito contente a olhar para a caixa e quando quis agradecer ao amigo já não o
encontrou. Catarina levou
para casa a caixinha de música e escondeu-a com muito cuidado para ninguém a
descobrir. O desejo não demorou a surgir: queria deixar de ser feia. Pôs-se à frente
do espelho, abriu a caixa e pensou no seu desejo com quanta força tinha.
Da
caixinha saía uma música muito bonita. Catarina olhou para o espelho cheia de receio de
que o sonho não se tivesse tornado realidade. Mas não. Ninguém iria acreditar
quando a visse com a sua nova cara, o ar alegre e bem disposto.
A sua vida
modificou-se completamente. Passou a ter amigos. Já ninguém falava da sua cara, da
sua maneira esquisita de andar.
Um dia perdeu a
caixinha de música. Ao fim de uns dias, a magia começou a desaparecer
lentamente. A boca alargou, os olhos voltaram a ficar muito pequenos. Sentiu de novo
uma grande tristeza e apeteceu-lhe fugir para muito longe ou nunca mais sair de
casa.
Ao fim de algum
tempo, acabou por se decidir: começou a sair à rua, a ir à escola. E, com grande
surpresa sua, os companheiros de escola, os amigos falavam-lhe como se nada
tivesse acontecido, como se a sua cara não tivesse voltado ao que era dantes.
A tristeza
desapareceu e Catarina percebeu que o importante não é a cara que as pessoas têm mas
a forma como são na vida, no mundo, como sabem ser solidárias com os outros.
José Jorge Letria, Histórias quase Fantásticas,
Cacém,
Edições Ró, 1981 (adaptado)
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